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Sociedade

Eduardo Santos. “A patroa mostrou-me o que era um lençol e disse para eu lavar os pés para não o sujar”

Tem uma memória prodigiosa e apenas a audição o prejudica. Conheceu a miséria mais lobo 888 é confiável -profunda, andou descalço nos anos em que foi pastor, recebeu como ordenado um par de sapatos. Aventurou-se por Lisboa e foi construindo o seu pequeno império na restauração. É Eduardo Santos, o das Conquilhas, na Parede. É uma história de vida…


Daniela Soares Ferreira, Vítor Rainho

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Eduardo Santos. “A patroa mostrou-me o que era um lençol e disse para eu lavar os pés para não o sujar”

 

 

Tem uma memória prodigiosa e apenas a audição o prejudica. Conheceu a miséria mais profunda, andou descalço nos anos em que foi pastor, recebeu como ordenado um par de sapatos. Aventurou-se por Lisboa e foi construindo o seu pequeno império na restauração. É Eduardo Santos, o das Conquilhas, na Parede.

É uma história de vida que reflete a do país onde milhões de pessoas passaram fome que dava dó, durante a II Grande Guerra, em que os que podiam fugiam das terras onde pouco mais havia para comer do que alguns produtos agrícolas – na época havia muitos vegetarianos à força. Fugiu da miséria a que estava condenado e fez um percurso de vida que o levou a uma situação confortável, à custa de muito trabalho. Eduardo, o das Conquilhas da Parede, é um clássico há muitos anos. Se o seu mentor conseguiu tirar da miséria boa parte da família, trazendo-os para a sua cervejaria, um dos seus sobrinhos resgatado tornou-se um ícone da restauração: António, sozinho, varria a sala principal, andando quilómetros durante a tarde e a noite, não se esquecendo de um pedido nem deixando ninguém à sede (sempre atento aos copos vazios) depois de sair do banco onde trabalhava durante o dia.

A sua voz tornou-se inconfundível para os milhares de clientes que passaram pelo Eduardo das Conquilhas: “Sai três imperiais, um prato de presunto, 200 gramas de camarão, uma sapateira ao natural para a mesa 7”, diz enquanto prepara já outra mesa. Mas Eduardo Santos é que pôs em pé um pequeno império da restauração que se alastra agora, pela mão do filho, ao alojamento local. Aqui fica a história de um homem com um percurso de vida fantástico, com a colaboração do filho Ricardo, a quem trata muitas vezes por Amor. 

Onde nasceu?

Nasci em Moninho, freguesia e concelho de Pampilhosa da Serra, distrito de Coimbra, a 1 de maio de 1930, fiz agora 89 anos. 

E esteve lá até que idade?

Havia muita guerra e muita fome. O meu pai tinha caído de umas escadas, nas azeitonas, e a minha mãe, como muitas mães, não tinha o que nos dar de comer. Fui servir de pastor para Arganil, andei descalço durante um ano.

Com que idade?

Devia ter oito, nove anos. Durante um ano não ganhei nada. No ano seguinte fui servir para ao pé de Castanheira de Pera e aí os meus patrões ofereceram-me uns tamancos. E era também pastor. Fui durante dois anos. 

E como tinha dinheiro para se alimentar?

Era uma sopa de abóbora ao almoço e outra ao jantar. As pessoas viviam da horta. Depois desses dois anos de pastor, a minha mãe ia ver-me uma vez por ano, porque eu estava muito longe e davam-lhe qualquer coisa como compensação pelo meu trabalho. Mas era tudo uma miséria. Eu não critico as pessoas, era o sistema. Davam-lhe meia broa ou dois ou três ovinhos para ela levar. Um dia, no curral ao meu lado, apareceram muitas moedas no chão. A minha mãe foi ver-me e eu contei-lhe. E ela disse-me que era para me experimentarem, para eu não mexer em nada. Disse-me que quem as lá tinha posto, havia de as tirar. E elas lá desapareceram.

E depois dos dois anos de pastor?

Arranjaram-me trabalho ao pé de Arganil para ser criado de casa. Ia ao mato, à lenha, às hortas, só não ia com o gado para o monte. Quando cheguei lá a minha patroa disse-me onde era o meu quarto. Fiquei espantado. Na altura já devia ter 14 anos. E ela perguntou-me se eu nunca tinha visto um quarto. Sabia lá eu o que era um quarto. Mostrou-me o que era um lençol e eu não sabia. Nunca tinha visto um lençol, sabia lá o que era. Explicou-me que eu tinha um lençol na minha cama e que todos os dias tinha de lavar os pés para não sujar o lençol. Disse-me ainda que tinham uma coisinha em madeira, com um cano que vinha do fogão a lenha e a água saía morna. E eu lavava os pés todos os dias. Num cantinho, tinha também um chuveiro. E todas as semanas eu tomava banho. Lá era um senhor, tratava-me como filho. Vejam a ironia do destino. A minha família lá na minha aldeia vivia ao lado da capela. Nós éramos conhecidos pelos da Santa. Fui para uma terra que era o Couratão, a seguir a Góis. Como a casa do meu patrão era ao lado da capela, era conhecido como Tio João da Santa. Olhem que isto!

E o que aprendeu enquanto lá esteve?

Ao longo desses dois anos aprendi a enxertar videiras, cerejeiras. Dois anos tratado como um filho. Depois fui para a minha terra e a minha mãe – na altura quem tinha menos hortas era mais pobre – tinha poucas hortas. Mas começou a tratar de hortas de outras pessoas que davam um x. Por exemplo, dez alqueires de milho. Era assim o sistema. E eu já tratava das videiras da minha mãe, dessas hortas. E por causa disso, lá na minha aldeia, puseram-me a alcunha de fazendeiro. Era o Eduardo Fazendeiro porque me dedicava às hortas. 

E como veio para Lisboa?

A minha irmã mais velha morava em Alfama e eu escrevi-lhe uma carta a ver se ela me arranjava trabalho. 

Com que idade?

Já devia ter 16 anos. Eu comprava o Jornal de Noticias onde havia anúncios a pedir moços chegados da província. Fui a uma entrevista, a seguir à guerra. Precisavam de três, estavam lá mais de 30. Após a guerra não havia trabalho para ninguém. A minha irmã dizia que eu tinha de ir para a terra, ao fim de três meses, porque não me podia ter lá mais tempo. O marido trabalhava na estiva e ela um dia lembrou-se de um senhor que conhecia em Carcavelos e viemos ver se ele me arranjava trabalho. Ele estava numa carvoaria, na altura não havia gás. Fui ter com o senhor mas ele não tinha trabalho. Dormi lá e no outro dia o senhor foi a uma vacaria, a uma leitaria, a uma mercearia, mas ninguém precisava de ninguém. Fui-me embora. 23 tostões custava o bilhete de comboio daqui da Parede para o Cais do Sodré e ele pagou-me o bilhete. O senhor não me arranjou trabalho mas transmitiu a um irmão que tinha uma carvoaria em Carcavelos e o irmão no dia seguinte foi buscar-me. Fiquei tão contente. E sabem onde é que eu dormia? No chão, numa garagem. Com aqueles sacos de carvão por baixo, sacos a fazer de travesseiro, mas o homem foi inteligente e eu dormi ali um mês ou dois. Foi inteligente porque reconheceu que não tinha condições de me ter ali. Então pediu a um primo de Oeiras que tinha uma carvoaria se me arranjava trabalho. O primo disse que eu podia ir porque o irmão dele tinha ido para a tropa. E assim já dormia numa caminha. 

Como era o trabalho?

Andava a vender carvão por Linda-a-Pastora e Linda-a-Velha, tinha uma carroça e um burro. Tocava com uma corneta, as pessoas apareciam e pediam. Era assim, uma vida difícil. Quando um dia fui chamado para a inspeção ao Quartel de Paço de Arcos ouvi uma voz a dizer ‘Eduardo dos Santos aprovado para todo o serviço militar’. Até saltei de alegria. A vida era muito dura. Eu era o soldado número 32, nunca me esqueci do meu número. Íamos para Timor, fomos levantar o fardamento e íamos de barco. A quatro dias de embarcarmos foi desmobilizada a companhia, já não fui para Timor.

O que fez depois da tropa?

Vim ter a Oeiras com o meu patrão, mas o irmão dele já tinha voltado da tropa, por isso ele já não precisava de mim. Fui ter com um senhor da minha terra que tinha uma carvoaria em Oeiras também. Olhou para mim, disse que já sabia o que se passava comigo, e disse que tinha comprado uma carvoaria com o irmão na Parede e mandou-me para lá. Ainda está lá a janelinha do meu quarto nestas casas aqui deitadas abaixo [ver foto], onde eu fiquei.

Como era a vida nesse tempo? Vendia muito carvão?

Não havia gás. Eu quando vim para aqui, os meus patrões compraram uma bicicleta e eu aprendi a andar. Ia de manhã saber o que as pessoas queriam. As pessoas cozinhavam em casa com carvão e lenha. Ao lado do colégio da Bafureira, havia lá uma pensão e eles também eram clientes. Eles tinham uma carroça e eu ia de manhã saber e depois ia entregar. Levava lá três carradas de lenha por semana. Era tudo a lenha e carvão. Há aqui em baixo uma moradia grande, que até está abandonada, que era uma clínica do doutor Cancela de Abreu. Eu ia lá levar uma carrada de lenha dia sim, dia não. Eles gastavam muita lenha e carvão. Quando andaram umas meninas a fazer uma demonstração de gás, as pessoas começaram a comprar gás. Os meus patrões, que eram dois irmãos, quando vem o gás, a lenha e o carvão começaram a sentir quebras de venda. O que é que se gastava em casa? A lenha para o fogão. O carvão já não gastavam. Eu ia também levar lenha e carvão aqui a uma taberna que já está fechada e o senhor da taberna perguntou se eu sabia de alguém que lhe tomasse conta daquilo porque estava doente.

E sabia?

Disse aos meus patrões. Foram lá e compraram-lhe a casa por 45 contos. Foi a salvação, porque entretanto o gás cortou as vendas do carvão e da lenha. Na altura a casa era chamada de casa de pasto. Fazia refeições para as pessoas. Quem andava nas obras pagava aos fins de semana. Mas todos pagavam. 

Os patrões do carvão investem na casa de pasto e o que se passa a seguir?

Eu ia levar lenha e carvão a uma casa aqui nesta avenida que vai da Parede a Carcavelos e havia lá uma família que tinha muitas criadas. E eu um dia perguntei à criada se aquilo era algum colégio. Ela disse que não. Eram só os filhos da madame, 14 crianças, seis criadas só para as crianças. ‘Sabe que o nosso patrão é diretor-geral da Carris’, disse-me ela. E eu pedi à madame, que ela sabia um bocadinho de português, se me arranjava um trabalho na Carris. Ela mandou levar o meu nome, morada e idade e eu fui lá levar. Daí a três dias estava a fazer a inspeção em Santo Amaro para a Carris. Mas para ir para os elétricos, para cobrador, ou para os autocarros era preciso ter 1,65 metros e eu só tinha 1,62 metros. Então fui para agulheiro. Íamos com a barra de ferro mudar o carril. A vida dá tantas voltas. Mas o meu sonho não era a Carris e eu não gostava daquilo. O meu sonho era comércio. Um senhor amigo arranjou-me trabalho para uma leitaria em Oeiras. 

Quanto tempo esteve na leitaria? O que fazia?

Tinha o sonho de ter uma cervejaria-café mas só minha, não queria ter sócios. Conhecia irmãos e irmãs sócias que se zangaram. Um dia, para se telefonar na altura levantava-se o auscultador e do outro lado dizia ‘numerou?’, eram as telefonistas. Em todo o lado havia uma central telefónica. Lá em Oeiras pedia imperial dia sim, dia não. ‘Numerou?’ e dizia o número da central de cerveja, pedia dois ou três barris. Um dia levantei o auscultador e havia uma voz tão simpática e eu disse-lhe que a voz dela era muito bonita. Chama-se Odete. Depois de falarmos tantas vezes, combinámos conhecer-nos pessoalmente. O encontro foi na Estação de Oeiras. Ela levava uma blusa às pintinhas e uma saia plissada. E eu levava um fato castanho, o único que tinha. Ela disse que só tinha quatro horas até entrar ao serviço e fomos ao jardim do casino, que na altura tinha muitas flores, até tulipas da Holanda. Depois viemos e ficámos aqui na Parede. E esta loja [onde é o Eduardo das Conquilhas] tinha escrito o número. Na altura não dizia aluga-se. Tomei nota no telefone, liguei ao senhorio que era advogado. Foi ter comigo onde eu estava em Oeiras. Pedi aos meus patrões para ir ter com ele. A renda era um conto 150 escudos e tinha um senhor que tinha aqui uma fábrica de bolos a quem eu tinha pedido se me emprestava dinheiro para ter uma casa minha, ele disse que quando tivesse a loja para ir ter com ele. E eu fui lá todo contente. Paguei dois meses de renda e já tinha a escritura marcada no notário de Oeiras. Ele disse que ia ver o espaço para me emprestar o dinheiro. Trazia com ele um amigo que olhou e lhe disse que emprestar dinheiro para ali era a fundo perdido, nunca mais o via. E ele não me emprestou nada. Aí comecei a chorar. Não é feio um homem chorar.

O que fez a seguir?

Fui ter com o senhorio, doutor Ramalho Afonso de Matos. Disse-lhe que ia entregar a chave da loja porque ia para África. Ele perguntou-me logo quem é que me tinha arranjado carta de chamada e eu disse que tinha sido uma pessoa da minha terra. Mentira. Então pediu-me para entregar a chave. Quem alugou a loja foi um senhor que era construtor. Mas o meu sonho era ali. Depois de estar oito meses em Oeiras vim ter com ele, ofereci-lhe cinco contos pela chave e ele disse que era pouco. Perguntou-me onde eu estava, eu disse-lhe e ele disse que o prédio que estavam a construir na zona onde eu me encontrava era dele. Depois ofereci-lhe dez contos. Mas ele não me dizia que era pouco. Um dia enchi-me de coragem, pus cinco contos na algibeira das calças e vim aqui ter com ele. Disse-lhe ‘Senhor Andrade, posso contar uma história verdadeira?’. E disse-lhe que a loja já tinha sido minha. Contei-lhe a história. ‘E agora dou-lhe 20 contos pela chave’, disse-lhe. E ele perguntou-me o porquê de não ter contado a história mais cedo. Disse para fazer contrato de promessa e tive de ir falar com o senhorio, a quem também contei a verdade. Quem me emprestou o dinheiro que já me tinha prometido era um senhor que me fornecia em Oeiras, Américo Ferreira. Isto em abril, mas ele só me podia emprestar o dinheiro em fins de setembro. E eu comprei um divã e dormia ali no cantinho da loja. Em Oeiras ganhava um conto e 500, pagava um conto e 400 aqui. Entreguei o quartinho em Oeiras e comprei um divã fiado, pus num cantinho, trabalhava em Oeiras e vinha à noite. Tinha de poupar. O senhor Américo Ferreira emprestou-me 25 contos. Chamei depois um pedreiro que era obrigatório pela câmara forrar 1 metro e meio de azulejos à volta.

E abriu as portas ao público quando?

A 10 de janeiro de 1965. Fez agora 54 anos.

O que vendia ao princípio?

Quando estava para abrir a minha casita acabou-se-me o dinheiro. Na altura meti um anúncio de casamento, era assim que se fazia. Casava com uma menina de 25 a 30 que me ajudasse a estabelecer. Mas esqueci-me da parte comercial. Fui levantar 87 cartas ao Rossio. Era assim. Tive uma entrevista no Cais do Sodré com seis meninas mas elas não percebiam. Também estavam tesas como eu. Tive ainda uma entrevista com uma menina que estacionou o carro em frente aos Jerónimos. Aí falou ela. Tinha duas filhas, era professora, o marido tinha falecido num acidente e precisava de uma pessoa que monetariamente a ajudasse. Tinha uma casa na Costa. Eu aí não falei, só no fim. Disse-lhe que ia tentar a minha sorte na Parede, que tinha bens mas que não tinha dinheiro. Disse-lhe que tinha um apartamento em Cascais, dois no Estoril, na Quinta da Marinha. Disse-lhe que era muito rico em bens mas não tinha nada. Ela perguntou se não podia vender alguma coisa e eu disse-lhe que não porque se vendesse perdia dinheiro e fui-me embora. 

E como conseguiu dinheiro?

Estava aqui um dia e a irmã da senhora que me lavava a roupa, que já não lhe pagava há sei lá quantos meses, bateu-me à porta. Vinha buscar-me a roupa suja. No outro dia perguntou-me quando é que era para abrir. E não sei porquê, mandei-a entrar e desabafei com ela o que se estava a passar comigo. Nesse dia à noite veio cá com o marido, disse que tinha falado com a irmã, que me conhecia há muitos anos e que dizia que eu era uma pessoa muito séria e emprestaram-me 22 contos. Ai jesus, fui chamar o pedreiro – a quem eu tinha dito que ia à minha terra e era mentira – e acabei as obras. Essa senhora foi um anjo que me apareceu. Sabem como é que eu lhe paguei? Já depois de estar aqui aberto, um conto e 10 por mês, vinha cá o marido receber. 

Quando finalmente abriu, vendia o quê?

Cafés, refrigerantes, pregos, cachorros e bifanas. À minha primeira empregada, que se chama Isabel e que penso que ela ainda é viva, pedi-lhe um favor. Ela ganhava 600 escudos e eu disse que não tinha dinheiro para lhe pagar o mês todo. Pedi-lhe para lhe pagar metade naquele momento e a outra metade no dia 15. Ela pediu para falar com o marido e ele deu-me autorização. No outro dia, a Isabel disse-me que tinha falado com o marido e que eu não ia conseguir ganhar dinheiro para pagar as minhas dívidas a vender o que estava a vender. Eu estava cheio de dívidas, toda a gente me fiava. Ela sugeriu que eu vendesse marisco e mesmo eu dizendo que não percebia nada daquilo, ela prometeu ajudar. Disse mesmo para criarmos a especialidade, que são as conquilhas à Eduardo. O marido, que também trabalhava na restauração, estava de folga no dia seguinte e foi ao mercado buscar dois quilos de conquilhas. A loja do lado, que era uma tipografia, ajudava-me a fazer os papéis para os moços irem levar à praia. ‘Se ainda não provou, venha provar as famosas conquilhas à Eduardo’.

Filho: Isto porque a praia da Parede era um sanatório onde muitas pessoas do país vinham. Como a praia era rica em iodo, os médicos de todo o país mandavam as pessoas todas para aqui. Os comboios paravam todos aqui. E quase não cabia lá ninguém. Tinha imensas tábuas onde faziam massagens terapeuticas e tudo. A Parede era uma panóplia de gente, era a praia que tinha mais gente na linha.

E as conquilhas fizeram sucesso?

Comecei a ir à Ribeira comprar as conquilhas todos os dias. Comprava berbigão e mexilhão. A ameijoa já era cara. A Isabel metia um bocadinho em cima do balcão com um bocadinho de sal. Eram as conquilhas à Eduardo. E quem é que começou aqui a vir com grupos de 20, 30 pessoas que fechávamos o espaço só para eles? O maestro Lopes Graça, que morava aqui na Parede. Um dia o maestro disse para eu comprar também ameijoa porque havia muitos colegas dele que também gostavam. E comecei a trazer. Eu não tinha nada para pagar e dava-me pena. Mais tarde falei com a senhora que vendia marisco e ela começou a fiar-me o marisco e vinha aqui ao fim do mês receber. Como é que paguei? Já andava a estudar as letras. Comecei a pagar com letras. Eles vinham cá fazer as contas, eu passava uma letra, o banco pagava e eu depois pagava ao banco. Mas há uma coisa muito importante para mim: nunca reformei uma letra. Sabem porquê? O banco emprestava-me 10 contos, o outro banco emprestava-me 20, ficava com 10 e pagava 15. Tinha o crédito que queria no banco porque não deixei de pagar nenhuma letra.

Ainda precisava de dinheiro nessa altura?

Foi assim que o meu negócio começou a subir.

E a história do café?

Vim de Oeiras e lá gastava café da Caféeira. E depois apareceu-me aqui um senhor para gastar café Chave d’Ouro mas eu precisava de crédito. O que eu usava, davam-me meio ano sem pagar e depois fui pagando. Eu dava a cara às pessoas. Eu fui às Janelas Verdes ter com o pai daquele moço do Benfica [Manuel Vilarinho] pedir para me dar meio ano de crédito. Ele olhou para mim e disse que já sabia pelo vendedor que eu estava no princípio da minha vida. Disse para eu gastar o café e o açúcar que precisasse e um dia, quando pudesse, pagava. Vim de lá tão contente. Estive três anos sem pagar café nem açúcar. Fui pagando com letras. Tudo se pagou, graças a Deus.

Como é que um antigo pastor ia enganando com umas mentirinhas?

Quando comecei a ter crédito bancário arranjava mentiras assim e você acreditava. Eu dizia que era muito rico lá na minha terra, mas não tinha lá nada. “Você não se importa que eu lhe pague antes do Natal, em meados do verão? É que eu vendo o meu azeite, tenho lá muitas oliveiras”, dizia eu. E não tinha lá nem uma. Juntava, fazia um crédito bancário e pagava tudo. Vocês não acreditavam? E dizia ainda que no final de junho pagava as contas todas porque tinha a resina e as sangrias na minha terra. Usava estas mentiras. De noite não dormia a pensar nisto. Mas no fim do mês de junho pagava-lhes tudo. Só nessa altura é que eu tinha dinheiro porque tinha vendido as sangrias todas, dizia-lhes. Eu pagava tudo e as pessoas acreditavam. Mas era o dinheiro do banco.

E qual foi o banco que lhe emprestou mais dinheiro?

Foi o Banco Espírito Santo e o Pinto & Sotto Mayor. Quando o Banco Espírito Santo abriu aqui na Parede era a conta número 2. Um dia estava ali um gerente chamado Antunes. Quando foi para comprar aqui o prédio fui lá ao banco e disse-lhe como íamos fazer. Pôs-me 100 mil contos na minha conta e eu só pagava juros do que gastasse. Vocês assim não acreditavam que eu tinha bens na terra? Acreditavam.

Quando começa a ter mais sucesso?

O marisco depois pegou e o Lopes Graça começa a trazer muitas pessoas. Vendíamos só conquilhas, berbigão, mexilhão e ameijoa. Um dia, eu já tinha carro, e fui com a minha esposa à doca de Sesimbra. E disse à Margarida que íamos levar seis sapateiras para ver se as vendíamos. Disseram-me que coziam em 18, 20 minutos. Estive 12 anos sem nunca fechar mas nessa altura já fechava à quarta-feira. Nesse fim de semana venderam-se todas. Voltámos lá e trouxemos mais 20. Fomos à lota e eu disse ao senhor que as sapateiras tinham largado as patas. Expliquei-lhe que as cozia 20 minutos mas ele disse que tinha que as matar primeiro. E explicou-me que tinha que meter vinagre na boca da sapateira. Depois ela morre e só depois é que posso cozer, assim elas ficam inteiras. Foi aí que começámos a gastar mais. Um senhor que tinha viveiros em Setúbal começou a vir aí com uma carrinha, já ficava com 50 sapateiras, lavagantes e lagostas. Uma empresa de Cascais também começou a vir aqui fornecer sapateiras. E eu pagava com as letras. Mas pagava tudo, comecei a vender assim devagarinho.

Como conseguiu comprar o seu primeiro carro?

Um cliente um dia perguntou-me se eu tinha carta de condução. Respondi que nem carta nem dinheiro para a pagar, e o cliente disse-me que era instrutor numa escola em Algés e que me emprestava dinheiro para a comprar e tirei a carta. Depois um vendedor de carros em Cascais quis vender-me um a pagar em três anos e meio, comprei o carro e paguei tudo com letras. 

E vinham cá mais pessoas sem ser o Lopes Graça?

Ele trazia muitas pessoas. Fechávamos a casa só para eles. Mas vinha muito mais gente. Vinha aqui uma menina com um casal tomar café. Um dia perguntei à senhora quem era a menina. Era sobrinha dela, estava a tirar o código de costura. Deu um aperto de mão, deu namoro e deu casamento. Era a minha esposa Margarida. Um dia o senhor que vendia café perguntou-me quando é que eu me casava. Eu queria casar-me mas não tinha dinheiro. Queria fazer um casamento na igreja com passadeiras e tudo. E ele disse que me emprestava o dinheiro. Eu tinha as letras guardadas mas disse 35 contos e ele disse que me trazia o dinheiro no dia seguinte. E trouxe. Perguntou-me se tinha padrinhos, eu disse que não e ele disse que ia ser meu padrinho com a esposa dele. Casámos na Igreja da Parede, casados pelo padre Zé. Eu e a noiva Maria Margarida. E não é que a minha madrinha de casamento também se chamava Maria Margarida? Foi tão giro. 

Onde entra o António, o empregado mais emblemático da cervejaria?

Quando estava para abrir a minha casita o meu irmão pediu-me para trazer para cá o Tonito que ele já tinha feito a quarta classe. Era para não andar ao mato e à lenha e a passar fome como nós andámos. O Tonito é meu sobrinho e veio para aqui com 11 anos. Eu não tinha dinheiro e comprei um divã de pessoa e meia, mandei fazer uma escada e dormia mais o meu Tonito. Dormimos ali um ano e tal. Na altura fechava às duas da manhã, era preciso pagar a licença na polícia de Cascais da meia-noite às duas. E era preciso autorização dos vizinhos, todos assinavam. A vida do Eduardo foi muito difícil.

O António não chegou a trabalhar no banco?

Filho: Sim, até há sete ou oito anos, acumulava as duas coisas. Entrava no banco às 8h00 e saía daqui às 3h00. Dormia quatro horas por noite, ou três horas e meia. 

Nessa época começou a ter mais clientes.

Começou a vir gente de todo o lado. Vieram, gostaram e trouxeram amigos e o Eduardo foi subindo. 

Depois foi alargando a cervejaria comprando os espaços ao lado.

A loja do lado foi nossa arrendada 25 anos. Depois consegui que ma vendessem. Eu já não queria mas o meu Ricardinho é que teve a ideia. 

O seu filho tem sido uma grande ajuda.

Há histórias reais da vida que vale a pena contar. Estávamos num congresso nos Açores. O presidente da nossa associação [AHRESP] perguntou ao meu filho o que é que ele estudava e o que é que queria fazer. O Ricardo disse que ainda não tinha decidido. Os filhos dele tinham tirado gestão hoteleira e era um curso onde não faltava trabalho. E o Ricardinho tirou esse curso e depois de gestão de restaurantes. E foi para Coimbra, queria depois ir para o estrangeiro. Nas férias e nas folgas íamos ter com o Ricardo. Dormíamos na Quinta das Lágrimas. Um dia a menina da receção, que já nos conhecia, disse que só tínhamos disponível a suíte da rainha. Estreámos a suíte mas nem quis saber o preço, só pagámos no fim. O meu filho contou-me que conheceu uma menina de Leiria a estudar, e que não sabia se ia dar namoro. Deu namoro, deu casamento, ela acabou o curso em Alcoitão e é aqui [ao lado da cervejaria] a clínica dela. O meu Ricardinho já não foi para o estrangeiro, foi a minha sorte. 

Filho: Trabalho aqui desde os 13 anos e quando alargámos a cervejaria fizemos um projeto como deve ser, uma cozinha moderna, porque só tínhamos um fogão de três bicos. Destruímos tudo, deixámos só as paredes com os tais azulejos de 1,50m e com as pinturas manuais e fizemos então a nossa primeira cozinha normal. Já pusemos imensa coisa de nova tecnologia. Mais tarde abrimos esta sala aqui e introduzimos logo em 2000 mais tecnologia, mais marisco, gambas fritas, tigres…

Têm os vossos próprios viveiros.

Filho: Sim, temos os tanques cá dentro, compramos e guardamos logo diretamente aqui, apesar de passar sempre por um intermediário. Temos uma grande quantidade guardada, vivos. Abrimos o Eduardo dos Petiscos e o Sushi do Mercado em Carcavelos, continua tudo aberto. E depois entrámos na área de hotelaria e turismo, com alojamentos locais. Temos um alojamento aqui ao lado muito bonito com os quartos todos diferentes, com temas de atrizes diferentes, é muito giro. E hoje estamos a acabar um rooftop todo em cor de rosa com piscina que é uma coisa de outro planeta. O restaurante ao lado vai dar um apoio a isto, todo com sofás, com hambúrgueres, salada, tudo para a malta nova, com internet, música.

E há alguma máxima que tenha aprendido e de que nunca se tenha esquecido?

Quando fizemos as primeiras obras de ampliação, dois casais chamaram-me ao balcão e perguntaram-me que obras ia fazer. Disse que ia fazer uma cozinha maior e fizeram-me a recomendação de continuar com as minhas toalhas de papel e não meter as de pano. Disseram-me ‘Não mude, Eduardo. Você é tão feliz nesta casa que entram aqui todas as categorias sociais’. Quem foi que me disse? O doutor Luís Filipe Pereira que era na altura o ministro da Saúde, nosso cliente. E aquele senhor António Gaspar, que era de Pampilhosa da Serra, na altura presidente do Supremo Tribunal de Justiça. 

Filho: Nós tínhamos aqui tanto ministros, como pedreiros, taxistas ou jogadores do Benfica e do Sporting. Era muito normal. Temos imensas pessoas que vêm hoje ao Eduardo e se estiverem de estar uma hora na fila estão, como o professor Carlos Queirós, Leonardo Jardim. Pessoas que são famosas e não precisam disto para nada, mas vêm, estão na fila, falam com toda a gente. O Marinho Peres também vinha muito. E os jogadores do Benfica vinham todos para aqui. Os nossos clientes ao fim de semana esperam. A fila é grande mas eles esperam. Há uma coisa muito importante: temos sempre marisco fresquinho, é tudo fresquinho, tudo cozido aqui, vem para aqui tudo vivo.

E como corre a outra cervejaria Eduardo, em Carcavelos?

Filho: Temos um espaço ainda de sushi e petiscos. Calamares, choco, pica paus, caranguejos. É ótimo para quem não gosta de sushi e quem gosta pode comer na mesma mesa. É um sucesso muito giro. Tem poucos lugares mas a localização é ótima.

A empresa é quase familiar?

Ao meu casamento só veio o meu sogro e um cunhado que daí a três dias ia para Angola. Quando ele veio de Angola, tinha namorada lá na terra mas não queria voltar para o Douro, para a vinha, porque a vida lá é difícil. Fui lá ao casamento dele, eu e a minha esposa fomos padrinhos. Conheci nessa altura as irmãs e irmãos da minha esposa. E nessa altura disse assim para mim: “Se Deus me der sorte no meu negócio, hei de tirar daqui esta gente toda”. Era uma pobreza total. O meu negócio cresceu e tirei-os de lá todos. Trabalham todos aqui. O Manuel veio para aqui direitinho, já não saiu daqui nem fez a tropa. A Laurinda veio depois, a Carmita veio direita e o Francisco também. Dei trabalho a todos. 

Filho: Ainda hoje, os trabalhadores daqui são 80% família.

Começou como pastor e conheceu o mundo inteiro como associado da AHRESP.

Filho. A maior parte das viagens que o meu pai fez pelo mundo foi pela associação de restaurantes de Portugal, na altura além da parte turística eram recebidos pelas associações similares dos países onde iam e pelos respectivos embaixadores:  Brasil, Argentina, Urugai, Chicago, New York, Tailândia, Macau, Timor, Tailândia, Tokio, Canadá, em toda essas viagens iam conhecer bons restaurantes locais , tinham congressos etc .. mas o mais importante era a vivência entre os sócios.

Andou muito pelo mundo?

Conheço muitos países do mundo. Japão, Tailândia…

Mas em trabalho?

A passear. Fui ao Brasil quatro vezes. Fui mesmo a muitos países. Nova Iorque, Chicago… Olhem, quando deitaram as Torres Gémeas abaixo tínhamos lá jantado um mês antes. Estive também na Argentina, mas já não consigo recordar-me de todos. A primeira capital do Japão foi Quioto e nós fomos de Hong Kong para lá. A menina que nos foi buscar tinha estado com turistas em Cascais, falava um bocadinho português. O mundo é tão pequenino. Fomos muito estimadinhos em Quioto. Ouçam o que vou contar agora. Sabem quem é que me telefonava e trazia cá grupos? Eugénio Salvador do teatro. Aquelas coristas todas charmosas do teatro, chegava a trazer 30. Fechávamos a porta. Não era giro? Ficávamos todos contentes quando o Salvador telefonava e trazia cá as meninas todas. 

Filho: Quando eles queriam cantar as músicas que na altura eram proibidas pela PIDE, nós fechávamos as portas todas e eles podiam cantar à vontade. Por isso é que adoravam vir para aqui. Depois lá dentro, nós tínhamos umas pipas de vinho e eles tinham um giz e cada vez que enchiam o jarro faziam um risco na pipa. E no fim a conta era somar os riscos.

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